Vim contar outra história pessoal.

Quando cheguei na Holanda, restando apenas 6 meses para conclusão do mestrado, estreitei meus laços com Baruch – ou Bento, em português – de Espinosa (1632-1677). Suas ideias já estavam presentes no meu texto muito antes disso, mas nossa relação era mais profissional. Entretanto, em tempos de distância e saudade, o fato de Espinosa ter estado, um dia, tão próximo, trouxe certa empolgação e presença. Resolvi estreitar nossos laços. Fui além do seu pensamento filosófico, quis conhecer sua biografia!
Foi bom ter alguém com quem me vincular…
Quanto mais imersa na pesquisa, quanto mais “enfiada” nos livros e no computador, circunscrita ao espaço da minha casa, mais eu sentia meu corpo se abrindo para outras experiências, às vezes, ameaçadoras, pelo grau de desterritorialização que indicavam. Mas, afinal, eu já não estava mesmo desterritorializada? Qual o jeito de fazer território numa nova terra? Como fazer, sem dominar aquilo que carrega, talvez, o maior componente de territorialização conhecido? A língua.
Foi então que meu querido orientador me apresentou Joseph Jacotot, cuja história pude conhecer através do livro O mestre Ignorante, de Jacques Rancière (2002). Jacotot fora um pedagogo francês dos inícios do século XIX que aventurou-se como professor bem aqui, país cujo idioma oficial é o holandês. Neste caso, como poderia dar aulas se não conhecia uma palavra sequer desta língua (como eu)? Nem ele sabia holandês, nem os alunos sabiam francês. O curso estaria, assim, inviabilizado por esta diferença? Ou seria uma igualdade? Ele e seus alunos eram iguais no desconhecimento da língua alheia, afinal. Isto, porém, não resolvia a questão, era preciso “o laço mínimo de uma coisa comum” (Rancière, 2002) e, sim, com o perdão do spoiler, Jacotot encontrou tal laço por meio de um livro.
Foi então que percebi: era este o caso da minha relação com Espinosa, o laço mínimo de uma coisa comum com a Holanda. A única relação que eu tinha com esta terra nova, desconhecida, onde ainda não havia estabelecido nenhum vínculo, nenhuma relação. Espinosa, sem saber, me ofereceu certo aconchego. Ele era algo que já fazia parte da minha história no Brasil e que não ficou para trás. Ao contrário, teve continuidade e pôde se fortalecer aqui. Eu tive sorte.
Mas, por quê tudo isso?
Ontem, quando troquei algumas palavras com o colega de um grupo que tenho participado ele disse: às vezes a gente pensa que não está entendendo porque temos dificuldade com o idioma, mas a verdade é que nós (o grupo) já nos conhecemos há muito tempo, então é mais fácil, já temos uma relação, já sabemos o que esperar… e então eu me lembrei do Espinosa, e de nossa relação antiga, que me trouxe conforto quando cheguei aqui.
O laço mínimo de uma coisa comum não precisa ser a língua, como provou Jacotot. E, no meu caso, penso mesmo que espremendo toda a frase o que fica, o mais essencial, é o laço. Quando uma criança emudecida chega ao consultório, por exemplo, o trabalho não se inviabiliza por isso. Podemos construir um laço. Não tenho dúvidas de que a linguagem facilita-nos a vida e a expressão, mas existem outras formas de acolher e ser acolhidos, de sentir-se bem, primeiramente, e ter o resto como consequência.
E me aproveito do pensamento de Espinosa agora: sentir-se bem é uma questão de encontro, de ter um bom um encontro, com algo/alguém que componha conosco e aumente nossa potência de agir. Então, primeiramente, e anterior a qualquer língua, precisamos de bons encontros, vínculos ou laços para que possamos ter a força necessária para enfrentar os desafios de se fazer em um novo lugar.