História de cego – reflexões a partir de uma conversa com Marcos Lima

“será que se eu estudasse numa escola comum, eu iria falar: é, realmente, os meninos vão para casa sozinhos porque eles enxergam e eu não?”

 

 

Marcos Lima, jornalista e comunicador, é cego e tem um canal no youtube onde conta suas histórias. Depois de assistir a um de seus depoimentos no Fórum Planetário de Sustentabilidade que aconteceu no início deste ano no planetário da Gávea, nós o procuramos para conhecer sua experiência de estudante.

Perguntamos se ele já teve algum mediador escolar na sua trajetória como estudante e o que pensa sobre o modelo de educação inclusiva que buscamos atualmente. O que teria sido melhor? Estudar em uma escola com colegas cegos, não cegos e com outras tantas características possíveis ou estudar em uma escola só de cegos?

Sobre isso, Marcos nos conta que nunca teve mediador escolar e traz sua opinião a partir da experiência que teve. Você lerá a transcrição de um áudio que ele nos enviou respondendo à pergunta e, em seguida, algumas reflexões nossas a partir de sua fala.

“Eu não sou pedagogo, eu não tenho formação em Pedagogia, então minha opinião é muito mais da minha experiência. Eu digo que tive o melhor dos dois mundos.

Estudei no Benjamin Constant, o primeiro grau inteiro, onde eu tinha colegas cegos, professores alguns cegos, outros não, mas todos os meus livros eram em Braille. Eu fiz a classe de alfabetização com uma pessoa que podia sentar do meu lado e me dar atenção, eu conheci outras pessoas cegas, convivia com outras pessoas cegas, e isso me ensinou que eu podia jogar futebol, que eu podia fazer um monte de coisas que eu não sabia que eu ia fazer.

De repente, se eu estivesse numa escola regular eu fosse o único aluno cego e eu ia acostumar que não podia fazer as coisas já que eu realmente seria diferente das outras pessoas, por não enxergar, das outras crianças e tudo mais. E quando você convive com um monte de cego, ser cego deixa de ser um problema porque todo mundo ali tem a mesma deficiência, então se o seu amigo amarra um tênis sozinho, você também pode fazer. Eu não sei se isso aconteceria na escola regular. Por exemplo, no Benjamim Constant, eu morava perto e minha mãe não deixava eu andar sozinho. “Você não enxerga”. “Mãe, mas o fulano também não enxerga e vem de muito mais longe!”. Será que se eu estivesse numa escola comum eu ia falar: é, realmente, os meninos vão embora pra casa sozinhos porque eles enxergam e eu não?.

E o segundo grau, eu fiz no colégio Pedro II, eu fiz concurso e tudo mais. E aí eu estudei numa escola regular. Eu não tinha livro em braille, não tinha professor especializado, era uma turma de 40 alunos, não tinha mediador, não tinha nada. De vez em quando tinha prova em braille e eu me dei muito bem, mas é porque eu já tinha base, eu já sabia quem eu era, eu já tinha confiança em mim enquanto aluno vindo do Instituto Benjamin Constant. Então, eu acho que eu tive o melhor dos dois mundos.

Eu tenho muita desconfiança de botar todos os alunos com deficiência em escolas regulares – e aí eu não vou analisar determinados tipos de deficiência, vou falar da deficiência visual – e aí você tem aula a vida inteira com um professor que não sabe braille. Aí, beleza, como é que o cara vai corrigir suas coisas? “Ah, não, vai botar um mediador”. Aí ficam todas as crianças lá e uma criança cega no cantinho com o mediador. Aí sai da sala de aula para o recreio com o mediador. Isso não é inclusão, desculpa.

Isso pra mim é a gente tapando o sol com a peneira, sabe? Se todas as crianças estão lá para aprender sozinhas, ou a escola dá condições dessa criança cega aprender, ou não adianta. O que você vai estar gerando não é igualdade, é “viu, o fulaninho aqui é tão diferente que ele precisa de uma pessoa só pra dar atenção para ele”. Ou “o fulaninho aqui é tão diferente que ele não pode fazer educação física” e eu tenho muito medo disso, do que isso passa para as crianças. Porque não gerar preconceito passa pelas coisas serem iguais, quando você tem condições iguais. “Não, mais aí no contraturno as crianças ficam numa sala de recursos”, pô, que legal, enquanto as outras crianças vão jogar bola, vão conviver com a família, outra criança vai passar a tarde inteira recuperando a matéria que a escola não foi capaz de ensinar a ela de manhã.

Então eu vejo ainda com muita reticência esse modelo e, novamente, eu não sou pedagogo e eu tô falando da questão da deficiência visual. Não tô falando de uma deficiência física, que aí tem que ter uma questão de acesso. Mas a deficiência física, por exemplo, a pessoa não vai precisar de um material especial para aprender, né? Como é que eu vou ter aula sem livro em braille? Como é que eu vou ter aula se o professor não sabe braille eu sendo uma criança pequena? Eu tive isso, mas eu já era grande e sabia me virar, eu fui atrás, eu estudei muito mais que os meus amigos da sala, mas porque eu já tinha condições de fazer isso por mim mesmo. Então eu acho que esse modelo, de incluir sem condições, eu acho que às vezes pode ser até pior.”

Conhecer a experiência e a opinião do Marcos aproxima a discussão sobre as práticas educacionais inclusivas da realidade. São as pessoas que fazem parte do público alvo da Educação Inclusiva que devem nos dizer sobre a eficácia das políticas públicas que visam promover a inclusão. Por esse motivo nós o procuramos, para refletir sobre o assunto com o pé no chão, a partir de uma experiência humana real. Falar de inclusão sem dialogar com os excluídos é perpetuar as práticas segregatórias que colocam o indivíduo na posição de carente de assistência e/ou auxílio. É desconsiderar as contribuições que têm a dar. Por isso, neste texto, a fala do Marcos vem em primeiro lugar e, agora, trazemos aquilo que nós pudemos pensar e repensar a partir do que ele disse.

“eu conheci outras pessoas cegas, convivia com outras pessoas cegas, e isso me ensinou que eu podia jogar futebol, que eu podia fazer um monte de coisas que eu não sabia que eu ia fazer”

Conhecer e conviver com outras pessoas cegas foi algo muito importante para o Marcos. Poder estar com quem compartilha das mesmas características que nós é sempre muito bom e tão necessário quanto estar entre pessoas diferentes de nós.
Para aqueles cuja a diferença já está escancarada, conhecer semelhantes pode ser justamente a novidade. E o desejo de sentir-se parte, ao contrário do que se pensa, não acaba com a adolescência. O sentimento de pertencimento é algo que buscamos a vida toda, porque, afinal de contas, ele nos abraça dizendo que existem outras pessoas no mundo que pensam como nós, que nos entendem, que nós não estamos sós.

Já a diferença, é muitas vezes desconfortável, nos tira do abraço quentinho e nos convoca a pensar e ser também diferentes, mudando, de preferência, para melhor.
No entanto, apesar de importante, o exagero no desejo de pertencimento fez, ao longo da história, com que não houvesse espaço para a diferença e, assim, muitos trágicos episódios de exclusão e até extermínio se deram. No campo da Educação, a diferença passou a ser reconhecida e valorizada como um propulsor do aprendizado e a proposta da inclusão surgiu tentando romper com a segregação que separava os indivíduos em escolas regulares e especiais. Mas quem disse que este modelo é o melhor? Ou, o melhor modelo para todo mundo?

Ao tornarmos a proposta da Educação Inclusiva uma regra, ao invés de sugestão, já corremos o risco de estar promovendo exclusão.

Foi a partir do ano 2000 que a prática da mediação escolar se intensificou no Brasil (Mousinho, R. et al., 2010) e, assim, deu “a cara” da Educação Inclusiva. Deste modo, é possível dizer que as pessoas nascidas a partir desta data conheceram muito mais este modelo do que o das escolas especiais, por exemplo. E, de alguma forma, também é possível dizer que foram “cobaias” de uma proposta que vem se inaugurando.

Sendo assim, estes estudantes estão expostos a todos os problemas típicos de um modelo que está em fase de implementação, como Marcos menciona mais a frente em “uma criança cega no cantinho com o mediador”.

Como ele mesmo disse, parece que teve o melhor dos dois mundos: uma experiência em escola especial e outra em escola aberta à inclusão. Mas, retornando às palavras de Marcos “eu conheci outras pessoas cegas… e isso me ensinou que eu podia jogar futebol”, uma provocação: por que o Marcos não descobriu que podia jogar futebol antes de ir para o Benjamin Constant?

Existem outros espaços de convívio e Marcos não os conhecia ou simplesmente não existem outros espaços de convívio onde ele pudesse ter essa experiência?

“eu já sabia quem eu era, eu já tinha confiança em mim enquanto aluno vindo do Instituto Benjamin Constant”

Neste ponto o Marcos fala de algo muito importante para qualquer pessoa: conhecer a si mesmo. O conhecimento sobre nossas características pessoais, sejam potencialidades ou limitações, permite com que nos sintamos mais seguros para lidar com as situações da vida.

O autoconhecimento é, ao mesmo tempo, conquista e processo. Conquista porque certamente há, sobre nós, algo que podemos afirmar, mesmo que este algo não seja permanente. Estas afirmações são como um terreno seguro a partir do qual experimentamos ou evitamos lidar de determinada forma com algumas situações da vida. E assim, no ato de decidir a partir do que já se sabe sobre si, acaba-se descobrindo mais sobre si mesmo. Neste sentido, percebe-se que o autoconhecimento é também processo.

No exemplo de Marcos, quando a cegueira fechou a porta para os livros comuns, abriu-se um caminho na direção do Braille. Talvez tenha sido ao longo deste caminho que Marcos eliminou qualquer dúvida sobre sua capacidade de aprender. Assim, no caminho que se abriu a partir da cegueira a possibilidade de aprender por meio do Braille se tornou o “novo normal” do Marcos. E então, ciente do seu potencial tanto quanto das dificuldades que surgiriam no encontro das suas características com as limitações da nova escola, parece que foi possível lidar com o ensino médio da melhor maneira possível.

O autoconhecimento deu ao Marcos muito mais possibilidade de ação frente aos desafios que encontrou, pois já sabia o que precisava fazer para contornar as barreiras e qual era, para ele, a melhor forma de estudar. Conhecer-se fez com que desenvolvesse maior autonomia para gerir seu processo de aprendizado.

Para o Marcos, seu autoconhecimento enquanto estudante deve-se muito às experiências que teve no Instituto Benjamim Constant porque foi lá que sua história aconteceu. Assim como para nós, para você e tantas outras pessoas, boa parte do autoconhecimento enquanto estudante ou indivíduo deve-se a outros espaços, porque nossas histórias acontecem em diferentes lugares e, em cada lugar, diferentes relações.

“Aí ficam todas as crianças lá e uma criança cega no cantinho com o mediador”

Neste trecho, assim como em outros momentos em suas falas, Marcos toca na questão da Mediação Escolar e nos faz pensar em como ela pode contribuir para a exclusão de sujeitos. Achamos esta uma afirmação delicada, mas de extrema importância, se quisermos avançar nas discussões sobre o papel da Mediação para a construção de escolas para todos.

Consideramos que algumas questões são necessárias, caso desejemos dar passos importantes nessas discussões e práticas: Qual é e qual tem sido o papel da Mediação Escolar? Tem-se contribuído para a inclusão ou exclusão dos estudantes?

Os objetivos, possibilidades e até as dificuldades relacionados ao trabalho de Mediação não contam, hoje, com um consenso. Apesar de sabermos que as intervenções do mediador vão variar de acordo com cada caso, é possível, e necessário, traçar um objetivo que, acreditamos, nos faz caminhar para a inclusão de todos os alunos.

Pensamos que o papel do mediador é, justamente, aumentar as possibilidades de relações do aluno que acompanha na escola. Neste caso, caberia a ele, em parceria com a instituição, criar situações, ambientes, materiais e atitudes que possam contribuir ao caminhar em direção à autonomia do aluno. Isto envolve a ampliação de suas relações e está associado não só ao mediador escolar, mas a todos aqueles que participam da vida escolar dos estudantes: professores, coordenadores, colegas, etc.

O incômodo com “a criança no cantinho com o mediador” é, infelizmente, muito comum e devemos nos perguntar constantemente como é possível contribuir para que os alunos em situação de inclusão “saiam do cantinho” nas escolas regulares.

“Se todas as crianças estão lá para aprender sozinhas, ou a escola dá condições dessa criança cega aprender, ou não adianta.”

A partir desta fala, achamos possível e, extremamente necessário, promover discussões sobre a autonomia das pessoas que estão passando pelo processo de escolarização. Entendemos a fala do Marcos a partir da necessidade de promovermos condições para que todos os estudantes tenham momentos e espaços, dentro do ambiente escolar, para fazerem sozinhos aquilo que é possível, ou contando apenas com a ajuda necessária.

Neste sentido, podemos nos perguntar sobre os caminhos que tem tomado a Educação (Inclusiva) e o papel que o mediador escolar tem tido no dia a dia das crianças, adolescentes e adultos que contam com a sua parceria.

A mediação tem buscado promover espaços de autonomia? Esta é uma questão que pode guiar o trabalho dos mediadores e demais profissionais envolvidos com uma educação para todos.

Aqui, entendemos autonomia não só como a habilidade de fazer as coisas sozinho, já que ninguém faz tudo sozinho o tempo inteiro. Mas sim, como a possibilidade de buscar os recursos, sejam eles materiais ou humanos, que possam auxiliar na vida na escola e fora dela.

Mousinho et. al (2010) explica que “posturas de superproteção ou a atuação como cuidador são ineficientes e não condizem com a proposta da mediação”. Assim, é preciso compreender que, ao invés do cuidado em tempo integral, o que a pessoa em situação de inclusão precisa é de alguém que, numa parceria, a auxilie a criar estratégias e a usar ferramentas que promovam constantemente sua autonomia. Desta forma, será possível guiar nossa prática para a criação de condições para a aprendizagem e desenvolvimento de todos.

“vejo ainda com muita reticência esse modelo”

Em seu depoimento, Marcos evidencia como foi positivo estudar em uma escola pensada exclusivamente para quem compartilha da mesma experiência que ele, a cegueira. A descoberta de potencialidades, o autoconhecimento e a confiança em si mesmo enquanto estudante foram conquistas relevantes que ele atribui ao período do Ensino Fundamental no Instituto Benjamin Constant. Além disso, Marcos denuncia muitos aspectos falhos na execução do modelo educacional inclusivo, revelando escolas e profissionais pouco preparados.

Talvez pareça um contrassenso ver autoras que defendem a Educação Inclusiva expondo as falhas do modelo educacional que prima pela diferença e os acertos do modelo educacional que se dá a partir da semelhança. Mas o fato é que não há acerto sem erro, sem olhar de maneira verdadeira e crítica para o que tem se realizado nas escolas.

Quando Marcos diz “esse modelo”, sabemos que está falando da pseudoinclusão, das tentativas mal feitas. E nós também vemos com muita reticência esse modelo. Em outras oportunidades de conversa que tivemos ele nos deixou claro que suas críticas à Educação Inclusiva referem-se ao modo como ela tem sido praticada aqui, no Brasil, e traz como parâmetro de comparação a Finlândia e outros países “que levam a sério essa questão”.

Ele explica que é “contra esse modelo de considerar escola inclusiva qualquer escola em que crianças com e sem deficiência estão na mesma sala de aula”. E, de fato, incluir não significa compartilhar do mesmo espaço físico e nem significa “fazer caber” na proposta pedagógica pensada para um outro.

Será que as pessoas conhecem as propostas da Educação Inclusiva? Será que sabem que a mediação escolar funciona como recurso temporário para alcançar um ideal de Educação?

Marcos nos trouxe dois exemplos de escola e disse ter provado o melhor de cada uma delas. Somente analisando os aspectos positivos e negativos de cada modelo conseguiremos identificar exatamente em que ponto estamos e, assim, descobrir o que precisa ser feito para chegar aonde queremos.

Rianne Zabaleta e Vanessa Alves

Por:

Foto de Rianne Zabaleta

Rianne Zabaleta

Psicóloga, estudiosa da vida, observadora do tempo, interessada pela singularidade de cada trajetória humana.

Posts recentes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Ação não permitida