Hesistir, com H e S.

Ocorreu algo interessante ainda na primeira metade do curso de mestrado. Querendo escrever “existem”, o lápis correu pela folha fazendo a palavra “hesistem”. Um erro ortográfico, não um erro qualquer, um erro crasso, mas revelador. Estranhei, sorri. Eu estava embriagada pela pesquisa! Esta palavra bastarda, estranha, desconhecida e nova, revelava sua potência no erro bem fundado.

O erro da escrita da palavra, que remete à dimensão hesitativa da vida, reflete também como, mesmo a partir de uma apreensão ingrata, errônea ou confusa, pode surgir algo de valor. Os donos da palavra talvez não concordassem ou não me autorizassem a isso, mas eu fiz. Aliás, aconteceu. E se repetiu, eu já não podia contra a palavra! Ela estava trabalhando no meu texto.

Decidi não corrigi-la, mas, ao contrário, afirmá-la, e assim afirmei também a singularidade da vida pela hesitação. Esta, tantas vezes entendida como erro ou despreparo, foi então valorizada exatamente pelo tremor que causa, pela incerteza que instaura, pelas possibilidades que abre. Para onde iria meu texto se eu não ficasse em dúvida sobre ele? Quanta coisa ficaria de fora se eu não me permitisse afetar pelos aparecimentos ao longo do percurso? Que tipo de pesquisa seria a minha se eu já soubesse, de antemão, sua conclusão? Nesta caso, para quê pesquisar? Como não hesitar no estudo da hesitação? Por que limpar o texto escondendo as marcas do processo?

Como um acontecimento que sai dos planos, a hesitação interrompe a linha reta que segue em direção ao êxito e oferece possibilidades de desvio. Mostra que o mesmo pode ser diferente e nos dá a oportunidade de escolher um gesto, uma palavra, um movimento, que faça nosso coração bater no compasso do mais certo¹. Esta seria a dimensão ética da hesitação, deixar que encontre seu caminho por ela mesma, ou não encontre – mas, de forma alguma, aniquilar a hesitação.

Seu acontecimento abre possibilidades para um acertar que não é refém de referenciais externos, mas se constrói na relação com estes, como um ajuste ou luta contínuo/a. A hesitação mostra que a vida não é isso ou aquilo, mas isso e aquilo, correndo, ainda assim, o risco de ser outra coisa e de deixar algo de fora, pois é circunstancial e finita. O êxito a que se pretende o sujeito da decisão, aquele que sabe o que quer e como alcançar, é borrado pela força deste acontecimento que abre a vida para novas formas de exitar. Pela hesitação, não só decidimos, existimos.

Deixa sublinhar em vermelho, a vida não se faz preto e branco.

 

¹ A terceira margem do rio, Guimarães Rosa.

 

Por:

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Rianne Zabaleta

Psicóloga, estudiosa da vida, observadora do tempo, interessada pela singularidade de cada trajetória humana.

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