Blocos de tempo

Uma vez eu li, ou soube, que o criador do jogo Tetris, aquele de encaixar blocos, começou a ver blocos em tudo, blocos que se encaixam em tudo. Nos prédios, nos móveis e utensílios de casa, nas mais variadas formas geométricas. Ele preenchia, mentalmente, os vazios do espaço com blocos que caíam do céu e ocupavam cada brecha. Tenho visto acontecer algo parecido.

Com a Google Agenda há quem esteja vendo a vida em blocos. É impressionante o efeito que estas tecnologias têm, não é? Ao quantificar o tempo cronológico que nos resta transformam toda qualidade do tempo que é nosso.

As horas viraram blocos. De hora em hora: a rotina se organiza assim. Oito blocos de hora de trabalho. Dois ou três blocos de hora no transporte. Um bloco de hora semanal na academia. Um bloco de terapia. Três blocos de casa, faxina e cozinha. De hora em hora, hora em hora, hora em hora. Não pode falhar! Se novos blocos caírem do céu, como um bloco de hora para o dentista ou um bloco de hora para um café… “Toma! Pega aqui uma hora minha para você, vamos usar!” Ou, para o imprevisto: devolve minha hora! Você roubou meu bloco! Você roubou meu tempo! Ladrão! Agora que roubou meu tempo estou nervosa, sem ar. Esse tempo que você pegou para si estava destinado a outra coisa! E agora, coluna? E agora que você me fez parar e ir ao médico, onde vou encaixar o bloco daquilo que eu deveria estar fazendo bem agora? Terei que roubar o tempo de outra tarefa. Só me resta essa opção. Serei eu também uma ladra. Ladra do meu próprio tempo, e estarei em falta, por isso, com alguma obrigação.

Como acreditamos que tudo deve ser feito, seguimos firmes às batidas do bumbo. Costuma ser horrível a sensação de não poder falhar a rotina. Se a falhamos, ou seja, abrimos espaço no seu preenchimento, é preciso se haver com isso cedo ou tarde, e sabemos que não há milagres na matemática. Para repor o tempo desviado, será preciso abrir nova falha. Estaremos sempre em débito. Portanto, nossa caminhada segue para frente, sem desvios, pois os afazeres têm uma ordem inegociável, esta é a sensação. É preciso seguir em linha reta compenetradamente, cumprindo acertadamente todas as obrigações. O caminho mais seguro é aquele pré-feito.

Não pensamos assim?

Fiquei sabendo, através de Peter Pál Pelbart (2015), que o tempo dos antigos também era constituído por blocos. Entretanto, havia ali uma beleza poética que não se encontra nos blocos da Google Agenda. Pelbart conta que “cada bloco de tempo possuía sua característica, sua qualidade, dependendo do acontecimento relevante que o preenchia”; que o “tempo existia em função de um acontecimento (seu conteúdo) que lhe dava sentido, e o tempo adotava o relevo deste acontecimento” (p. 85). Fiquei a pensar… Quais são os acontecimentos relevantes do deslocamento de um ponto ao outro no nosso dia? Qual sentido conferem ao nosso tempo e à nossa história? O relevo dos nossos blocos de tempo já me parece quase nenhum, forma, no máximo, uma planície.

Este tempo, afinal, não depende dos acontecimentos, já previu tudo o que podia/devia nos acontecer. Como uma obra da certeza, cujo resultado é predeterminado antes mesmo que a tarefa comece (INGOLD, 2022), os blocos de tempo da agenda podem converter-se facilmente em pontos de uma linha reta. Aliás, com Pelbart (2015), fica claro que os pontos deste tipo de linha não representam acontecimentos, mas, apenas, eventos.

Pego, por empréstimo, as palavras do escritor polonês Bruno Schulz, que Pelbart se emprestou primeiro.

Os fatos comuns são ordenados no tempo, dispostos em sua sequência como numa fila. Ali eles têm seus antecedentes e suas consequências que se agrupam apertados, pisam os calcanhares uns dos outros, sem parar, e sem qualquer lacuna. Isto tem a sua importância para qualquer narrativa cuja alma seja continuidade e sucessão. Mas o que fazer com os acontecimentos, que não têm seu próprio lugar no tempo, os acontecimentos que chegaram tarde demais, quando todo o tempo já foi distribuído, dividido, desmontado, e que agora ficaram numa fria, não alinhados, suspensos no ar, sem lar, errantes? (SCHULZ apud PELBART, 2015, p.93)

Assim, suspeito que sejam, na verdade, as falhas no tempo, os imprevistos, que conferem maior ou menor relevo ao nosso tempo e à vida. Afinal, ao se tratar de vida, “o que importa não é o destino final, mas todas as coisas interessantes que ocorrem ao longo do caminho” (INGOLD, 2022, p. 305).

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Foto de Rianne Zabaleta

Rianne Zabaleta

Psicóloga, estudiosa da vida, observadora do tempo, interessada pela singularidade de cada trajetória humana.

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