Viagem ao tempo de Paredes

Ainda escuto suas vozes em meu pensamento. Suas falas aceleradas com o sotaque carregado de uma mesma língua, porém outra.

Na minha dissertação de mestrado eu nomeio de tempo gordo aquele que não é linha com direção única, mas emaranhado de tempos que tornam o instante espesso. Pois bem, eu me vi neste emaranhado.

Foi quando estive na Freguesia de Paredes da Beira, do concelho de São da Pesqueira, localizado no distrito de Viseu, próximo à cidade do Porto em Portugal. Lá onde meu avô nasceu e cresceu.

Pelo caminho, as vinhas. Desenhadas nas montanhas, esculpidas polos homens, mas em obediência às curvas do terreno natural. Sobe e desce, muitas curvas, yes, e s…

Fui ter com os meus primos, em sua casa no alto, com vista para toda aquela abundância de Deus. Mares de morros, como se diz no Rio de Janeiro. Mares sem fim, de terra cultivada.

O São Bernardo Obelix avisou que havíamos chegado e logo veio receber-nos. Os primos saem para fora e cobrem os rostos com a mão, fazendo sombra. A família do Brasil chegou. Ou parte dela.

Enquanto prepara-se o jantar, vamos à aldeia – a pé. Mas antes…

Venha cá, tire uma foto. O campo de futebol do qual fala seu avô ficava precisamente aqui, onde está nosso jardim. Aquelas pedras serviam de arquibancada. Por aqui, subimos à aldeia. Vamos primeiro à capela. Este pinheiro, eu plantei, mas é diferente daquele outro. Estás vendo?

Da capela, o pôr do sol. Em seu entorno, fragmentos de uma muralha. Um dos sete castelos que cercavam a Freguesia. De sua ruína, o povo aproveitou as pedras para construir as próprias casas. Descemos da capela à aldeia ouvindo histórias pela boca de quem sempre viveu ali. Vimos as casas diminutas e ouvimos um “filha da puta”, o povo estava pela calçada vendo-nos passar.

É a neta do Alberto, do Brasil!

O passeio seguia pelas ruas estreitas e me levava pelos pontos principais: a igreja, o relógio, a fonte, o banco de sentar… a casa onde meu avô morou. Não era mais a mesma, mas o primo, que também lá residiu, foi o responsável pelo projeto ao novo dono.

Pergunte ao seu avô se ainda lembra de mim – disse Dona Zulmira.

Seguimos em frente.

O primo conta que descobriu faz pouco que grande parte do terreno da aldeia era, afinal, dos Trindade – os da nossa parte. Quando meus bisavós morreram, deixando seis crianças no mundo, muitos se aproveitaram para apossar-se do terreno. Não há mais o que ser feito.

Voltamos à casa.

Nós e os primos, com seus três filhos, sentamos todos à mesa. Demos início ao jantar de seis etapas: aperitivo, entrada, principal, sobremesa, digestivo e café.

Força! Eis uma palavra de incentivo para servirmo-nos.

O tempo já não era mais o mesmo. Havia algo de entre naquela casa e em toda região. Fazia-se o próprio azeite e vinho, bem como o próprio pão. Havia horta, celeiro e galinheiro para abastecer uma cozinha de última geração. No jantar, pautaram sobre acesso à saúde, precarização da Educação e o desequilíbrio climático que afeta as plantações. Havia preocupação.

Pela manhã, após o pequeno almoço, saímos em direção às vinhas. A prima levou chapéu, cesta e alicate para montar o cenário. Explicou sobre época e processo de produção do vinho. Também nos mostrou Olivais e levou-nos até uma fábrica de azeite, onde outro primo nos recebeu. Seguimos em S passando por Trevões e São João da Pesqueira até alcançar Pinhão. Pelo caminho, ouvimos histórias sobre Dona Ferreirinha, os desafios de se cultivar o terreno à época e as águas revoltas do Douro que punham barris e pessoas ao mar.

O almoço na taberna teve leitão e cabrito à vontade, além de farpas carinhosas entre os primos, que debatiam sobre machismo e feminismo. A sobremesa nos parecia macarrão doce, e o digestivo fora a mais forte cachaça, para desinfetar a alma. No museu do vinho, a visita foi guiada pelos próprios primos, que explicaram o uso das ferramentas e técnicas, e também falaram sobre tipos de uva e pragas.

À noite, depois que as crianças retiraram-se da mesa fomos à varanda tomar os digestivos e o café. Conversamos por tempo sem conta sobre toda a gente, o hábito de caça da região – sinto pelos coelhos e javalis – e até mesmo sobre vida extraterrestre. O primo indicou-nos júpiter no céu, que o filho havia identificado com um aplicativo no celular. Pouco antes de entrar, fomos presenteados com uma estrela cadente esverdeada linda, linda.

No domingo haveria almoço, todos foram avisados. Antes disso, é claro, peregrinamos por entre as casas de tios-avós e primos, são 27 afinal. Em todas elas, entra-se pela cozinha. Dona Lourdes nos recebeu com bolo, Dona Laura, endomingada, pronta para a missa, disse logo: fui ao Brasil há 25 anos. Fez-nos entrar. Mostrou todos os cômodos e seu quarto, cuja cortina e a colcha da cama formavam um conjunto. Era um mimo só. Suas lágrimas saudosas, ao falar de meu tio-avô Américo fez-me emocionar. Quanto amor, quanta saudade! Já se passaram 17 anos.

Chegamos à tia Glória. Toda a gente estava rodeando a mesa da cozinha, onde os preparativos finais misturavam-se aos aperitivos. Tome um pão de Deus. Beba esta cerveja com vinho. Mostre a foto do teu avô. Pegue o telefone da minha filha. Conheça Dona Maria. Dona Maria. Pode demorar, mas depois que reconhece, nos prende. O que houve com seu pulso?

Carregava dois bebês à cabeça e uma cesta pesada em cada mão. Tropeçou de repente e para amparar as crianças caiu de mau jeito quebrando o pulso que, sem assistência, assim ficou.

Vamos à mesa. Força!

Tremoços, pãezinhos, delícias do mar, bolinho de bacalhau, azeite, vinho branco, tinto, palhete. Cozido à portuguesa. Experimente a pata, a orelha, o focinho! Estes enchidos fomos nós que fizemos. E este vinho também. Como o azeite, ora pois. Prove deste, misture com aquele, meta isto, deixe aquele, pegamos outro, mostre a foto, pegue o repolho, passe as couves, ponha molho, troque o prato, repita outra vez. Marmelada, bolo de sorvete com café, torta de natas, torta de frutas, vinho do porto, cachaça, licor.

Foi uma pausa no tempo, no meu tempo, no nosso tempo de urgências para frente. Abrimos espaço com as mãos, fizemos caber. Metemos todo o tempo, tantos tempos, em um só fim de semana. Engordou-nos, de tanto. Um entre lá e cá, um hoje misturado de ontem com a presença do futuro no presente. Uma confusão! Foi bom demais tê-los conhecido. Me senti amada por quem nem me conhecia. Ora pois, como disse um dos primos: estão do outro lado do mundo, mas são sangue do nosso sangue! E isto importa tanto a eles… somos da família, afinal.

Obrigada!

Por:

Foto de Rianne Zabaleta

Rianne Zabaleta

Psicóloga, estudiosa da vida, observadora do tempo, interessada pela singularidade de cada trajetória humana.

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